Código Florestal X Lei da Mata Atlântica.

Legislação municipal que determina a aplicação do Código Florestal para áreas de Mata Atlântica é entendida como inconstitucional, em manifestação da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo.

 

Representando os interesses das entidades ambientalistas Associação Movimento Resgate o Cambuí e APAVIVA – Associação dos Amigos da APA de Campinas, ambas de Campinas, o escritório Sia Gino e Mardegan Sociedade de Advogados (SGM Sociedade de Advogados) representou junto à Procuradoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo contra a alteração do artigo 18 da Lei 10.850/2001 (Lei da APA de Campinas). A representação recebeu o número SEI n. 29.0001.0059864.2020-82.

 

A Lei 10.850/01, do Município de Campinas, cria a Área de Proteção Ambiental (APA) de Campinas/SP. A APA possui grande riqueza natural e importância para manutenção dos recursos hídricos da região, sendo essencial para a produção e recarga hídrica. Segundo seu Plano de Manejo, aprovado pela Portaria SVDS 01/2019, na APA encontra-se um dos maiores remanescente de vegetação do município de Campinas, sendo em sua maioria do bioma Mata Atlântica.

 

O artigo 18 da Lei 10.850/01 foi alterado pela Lei Complementar 186, de 27 de dezembro de 2017, conforme demonstra quadro comparativo abaixo:

 

Artigo 18 da Lei 10.850/2001

(original)

Artigo 18 da Lei 10.850/2001

(com alteração dada pela Lei Complementar 186/2017)

Art. 18. É vedado o corte ou a supressão de todas as matas descritas no artigo 17. Art. 18 – A intervenção ou a supressão de vegetação nativa em Área de Preservação Permanente somente serão permitidas nas hipóteses de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental previstas na Lei Federal nº 12.651, de 25 de maio de 2012. [Código Florestal]

 

O artigo 17 da Lei 10.850/2001 – citado na versão original do artigo 18 – classifica diversos remanescentes de mata nativa presentes na APA como de proteção permanente, que até a alteração do artigo 18 tinham seu corte totalmente proibido.

 

A Lei Complementar 186/2017 alterou o artigo 18 da Lei da APA para possibilitar a intervenção e supressão em áreas de preservação permanente (APP) em caso de “utilidade pública, interesse social ou baixo impacto, conforme conceitos previstos no Código Florestal (Lei Federal n. 12.651/2012)” (g.n). A alteração abarcou tanto as matas do artigo 17 (declaradas como APP pela própria lei), quanto as demais APP, que são definidas pelo artigo 3º, II e artigo 4º, ambos do Código Florestal – que possam existir na APA.

 

O fato de a definição geral do que vem a ser uma APP estar no Código Florestal não altera a obrigatoriedade de observação da lei da Mata Atlântica quando se tratar de intervenção ou supressão nesse bioma, estando ou não em APP. Ou seja, estando em bioma da mata atlântica, a Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006) deve prevalecer.

 

A alteração do artigo 18 “afrouxou” as regras ambientais até então aplicáveis a essas áreas e ainda estabeleceu o parâmetro mais brando, qual seja o Código Florestal e não a lei da Mata Atlântica, como deveria ser.

 

O quadro abaixo mostra as diferenças entre as hipóteses que permitem intervenção ou supressão em APP nos termos do Código Florestal (regra geral) e as hipóteses de intervenção ou supressão de vegetação pertencente ao bioma da mata atlântica nos termos da Lei da Mata Atlântica (regra específica):

 

Lei Federal n. 12.651/2012

Código Florestal

Lei Federal n. 11.428/2006

Lei da Mata Atlântica

 Art. 8º. A intervenção ou a supressão de vegetação nativa em Área de Preservação Permanente somente ocorrerá nas hipóteses de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental previstas nesta Lei. Art. 14. A supressão de vegetação primária e secundária no estágio avançado de regeneração somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública, sendo que a vegetação secundária em estágio médio de regeneração poderá ser suprimida nos casos de utilidade pública e interesse social, em todos os casos devidamente caracterizados e motivados em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto, ressalvado o disposto no inciso I do art. 30 e nos §§ 1º e 2º do art. 31 desta Lei.

 

§ 1º A supressão de que trata o caput deste artigo dependerá de autorização do órgão ambiental estadual competente, com anuência prévia, quando couber, do órgão federal ou municipal de meio ambiente, ressalvado o disposto no § 2º deste artigo.

§ 2º A supressão de vegetação no estágio médio de regeneração situada em área urbana dependerá de autorização do órgão ambiental municipal competente, desde que o município possua conselho de meio ambiente, com caráter deliberativo e plano diretor, mediante anuência prévia do órgão ambiental estadual competente fundamentada em parecer técnico.

 

§ 3º Na proposta de declaração de utilidade pública disposta na alínea do inciso VII do art. 3º desta Lei, caberá ao proponente indicar de forma detalhada a alta relevância e o interesse nacional.

 

As hipóteses de supressão de vegetação no caso da Lei da Mata Atlântica são claramente mais rigorosas. E isso porque esse bioma carece de proteção especial, o que lhe foi conferido inclusive, pela Constituição Federal (artigo 225, §4º) e Constituição do Estado de São Paulo (artigo 196).

 

O legislador constituinte demonstrou claro interesse e necessidade de preservação especial ao bioma, de maneira que o elevou a patrimônio nacional.

 

Assim, respeitando os mandamentos constitucionais, a Lei da Mata Atlântica garante tratamento especial ao referido bioma e esse objetivo não pode ser reduzido, sob pena dessa proteção especial não atingir a efetividade almejada.

 

A nova redação do artigo 18 impulsionava, claramente, a pressão que a APA já vem sofrendo ao longo dos últimos anos, precisamente, dessa unidade de conservação que tem dentre seus objetivos proteger mananciais (artigo 2º, II da Lei 10.850/01), tão essenciais para garantir o acesso à água, pode estar fadada a perdê-los. Além, é claro, de ser área de extrema importância para preservação do bioma mata atlântica.

 

A lei municipal (nesse caso, a lei municipal complementar 186/2017) que negava vigência à lei da Mata Atlântica incorria em clara inconstitucionalidade por desrespeitar os preceitos do artigo 225, §4º, CF/88 e artigos 191 e 196 da Constituição do Estado de São Paulo, bem como pela contrariedade também perante o artigo 170, VI da CF/88, posto que a alteração permitia exploração ilegal do meio ambiente (nesse caso, do bioma mata atlântica), o que não é objetivo do desenvolvimento econômico em nosso país.

 

Todos esses argumentos pela inconstitucionalidade da Lei Complementar 186/2017 foram apresentados à Procuradoria Geral de Justiça pelo SGM Sociedade de Advogados, requerendo uma ação de inconstitucionalidade. E a manifestação da Procuradoria Geral do Estado, em parecer da Promotora Patrícia Salvador Veiga caminhou para o mesmo entendimento das razões defendidas na representação, senão vejamos:

 

Com efeito, o ato normativo impugnado, desprezando a complexidade e a riqueza ambiental das áreas integrantes da APA– Campinas, ofertou nova redação dada ao art. 18 da lei em análise, estabelecendo duas novas situações: não apenas viabilizou a intervenção ou supressão em remanescentes de matas nativas estabelecidos no art. 17 – que antes eram expressamente vedadas –, como também determinou a incidência da normativa prevista no Código Florestal, sem distinção para áreas nas quais possa ser observada a presença do Bioma Mata Atlântica, que, como sabido, estão submetidas à legislação específica

Dessa feita, ao prever a incidência de regramento diverso para referida área de tutela especial, a normativa municipal contestada, além de vulnerar a proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, imiscuiu-se, ainda, no âmbito de competência conferida à União, violando, assim, os arts. 144, 191 e 196 da Carta Paulista e os arts. 24, VI, § 1º, 30, I e II, da Constituição Federal, não se olvidando a desconformidade com o Tema 145 de Repercussão Geral. (grifos nossos).

 

A Procuradoria Geral de Justiça determinou o arquivamento da Representação, tendo em vista a superveniência da Lei Complementar 296/2020 (lei posterior a Representação), que corrigiu a inconstitucionalidade, fato que impede a propositura de ação para controle de constitucionalidade abstrato pela Procuradoria.

 

A verdade é que a inconstitucionalidade e ilegalidade eram tão evidentes que Lei Complementar 296/2020 corrigiu o erro anteriormente cometido na alteração do artigo 18, agora sim constando a necessidade de observância da lei da Mata Atlântica, senão vejamos:

 

Art. 7º Fica alterado o art. 18 da Lei nº 10.850, de 2001, que passa a vigorar com a seguinte redação:

 

Art. 18. São vedados o corte ou a supressão dos remanescentes de matas nativas indicados no art. 17 desta Lei, salvo nas hipóteses de utilidade pública, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto e seguindo-se os artigos pertinentes da Lei Federal nº 11.428, de 22 de dezembro de 2006, observado o estabelecido no Plano de Manejo e sujeito à prévia deliberação do Conselho Gestor da APA. Parágrafo único. As compensações ambientais deverão ser necessariamente na APA de Campinas.” (grifo nosso).

 

Vale apontar que as entidades pressionaram para que essa alteração fosse feita durante do processo legislativo. Esse foi um caso em que o erro foi corrigido durante do próprio processo legislativo, mas não é a realidade majoritária.

 

Conforme parecer da PGJ, a lei da Mata Atlântica deve prevalecer em casos de bioma mata atlântica, caso contrário, estamos diante de verdadeira inconstitucionalidade.

 

Nosso escritório atua em defesa de entidades para representação contra legislações inconstitucionais, em especial na área ambiental. Também representamos as entidades para auxílio na elaboração de textos de emendas a serem propostas para mudança da legislação.

Daiane Mardegan

Daiane Mardegan

Advogada especialista em Direito Ambiental

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